quinta-feira, 10 de março de 2011

Vou te dar um conselho… de mulher pra mulher: você não precisa ser santa, nem puta. Você pode ser livre.

Vou te dar um conselho… de mulher pra mulher: você não precisa ser santa, nem puta. Você pode ser livre.

Por Tica Moreno
*

Quando eu estava no ensino médio, você fez um desserviço pras meninas da minha idade, que é a mesma idade que a sua.

Foi a época da “garota sandy“: uma jovem, bonita, magra, de cabelo liso, a filha que todo pai e mãe queria ter, rica…. e virgem. E que afirmava que queria casar virgem.

A garota sandy era aquilo que nenhuma de nós éramos, mesmo que a gente tivesse uma ou outra característica dessas aí de cima. A verdade é que a gente nem queria ser daquele jeito.

Foi a primeira vez (que eu me lembre) que eu me vi sendo comparada com um modelo de mulher que eu não queria ser. E eram os outros que nos comparavam. Aí a gente foi se sentindo inadequada, umas mais, umas menos.

Qual era (qual é) o problema de não casar virgem? (Isso pra não perguntar qual é o problema de não querer casar…)

Você não acha um problema de fato, até porque há alguns anos você afirmou que não tinha casado virgem. Fico até aliviada por você, porque imagina se não fosse bom com seu marido? Ainda mais se a relação de vocês for monogâmica e conservadora… Não desejo uma vida sem orgasmo nem pro meu pior inimigo.

Mas voltando. O padrão “garota sandy” não foi uma reportagem qualquer que saiu na revista da folha. Reforçou um padrão que faz com que a anorexia e a bulimia estejam entre as principais doenças de jovens mulheres, que faz com que milhões de meninas e mulheres vivam sua sexualidade a vida inteira de forma passiva, em função do desejo e do prazer do cara, que faz as meninas e mulheres que são donas do seu desejo serem consideradas vadias, vagabundas, putas, devassas.

O machismo faz isso: separa as mulheres entre santas e putas, “valoriza” as santas e puras e desqualifica, discrimina, violenta as “putas”.

Deve ter algum motivo pra você se afirmar como santa, e não como puta, numa época da sua vida.

E daí eu vou te dizer, caso você ainda não tenha entendido o porquê dessa carta aberta, seu segundo desserviço pras mulheres. Ser a nova garota devassa.

Pra quê?? De dinheiro você não precisa.

Você não estudou psicologia? [Não, me disseram aí nos comentários que ela estudou Letras, mal aê - mas eu lancei um google e vi que na época do meu ensino médio, de onde eu tirei a memória pra escrever esse post (ano 2000), circulou ainformação da psicologia, rs.] Deveria ter aprendido alguma coisa sobre sexualidade teoricamente, além da prática (que, de novo, espero que seja boa pra você).

Nem as santas, nem as putas, são donas do seu desejo, do seu corpo, da sua sexualidade. O símbolo da devassa, e o imaginário que essa cerveja construiu – e que você vai propagandear – é o de uma mulher feita nos moldes do que a maioria dos homens tem tesão por. Importa o tesão deles, e não o nosso.

As revistas femininas (e as masculinas) fazem isso também. Sabe aquelas dicas da Nova pra fazer qualquer mulher deixar qualquer homem louco na cama? Então. É o mesmo machismo, a mesma submissão.

Você de alguma forma tá querendo apagar a imagem de santa, usando a idéia de que você pode ser devassa?

Vou te dar um conselho… de mulher pra mulher: você não precisa ser santa, nem puta. Você pode ser livre.

* Tica Moreno é formada em Ciências Sociais, foi do DCE da USP e do Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CEUPES). Atualmente trabalha na Sempreviva Organização Feminista, SOF. Tica é militante da Marcha Mundial das Mulheres.
 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As pedras no caminho à justiça

por Analine Specht, Claudia Prates e Sirlanda Selau*

Em decisão inédita, o ex-juiz Marcelo Colombelli Mezzomo foi demitido dos quadros da justiça gaúcha, por assediar atendente de lanchonete no Rio Grande do Sul. Esta é uma das manchetes que circularam desde o dia 07 de fevereiro, data que o Tribunal de Justiça exonerou o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo. A alegação da exoneração teria sido “atitudes impróprias” ou “procedimento incompatível com a dignidade e o decoro das funções”.
O fato que deve servir de exemplo é também uma constatação de que a cultura machista e patriarcal, que permeia inclusive as instâncias judiciárias no país, constitui-se como verdadeiro óbice a realização da igualdade entre homens e mulheres e a promoção da justiça.

Dos fatos:

“Na manhã do sábado, 29 de maio de 2010, o então juiz de direito da vara de Três Passos – cidade 478 km distante de Porto Alegre – comprou um pastel no estabelecimento de Wilson e Maria Lori Neuhaus. Quem o atendeu foi Daniela, de 21 anos, casada há cinco com o filho do casal.
A garota se sentiu constrangida diante do olhar de Mezzomo, classificado por sua sogra como “atrevido”.
- Ele falou que ela era muito bonita para estar atrás de um balcão – relata Lori Neuhaus.
Mesmo depois de Daniela ter dito que era casada, o homem insistiu no assédio. Nem a intervenção de Lori o fez recuar.
- Ele me pediu licença para ficar cobiçando a moça enquanto falava comigo – prossegue a senhora, que assustada, pediu que o magistrado se retirasse.
O homem chegou a dizer que Daniela era “muito bonita e gostosa” e que a familia deveria tomar cuidado com o assédio de estranhos.
- Ele falou que cafajestes como ele poderiam aparecer e provocar problemas – descreve a proprietária do estabelecimento.
Antes de ir embora, Mezzomo pediu ainda que Lori lhe desse um tapa na cara para que ele a deixasse em paz.
- Ele não estava no seu estado normal – acredita a senhora.
Na interpretação do desembargador Túlio Martins, o ex-titular da vara de Três Passos estava “visivelmente embriagado”. “Não sei se não estava sob o efeito de drogas também”, complementa.” (fonte: O Globo).

Do direito:

A mulher é sujeito de direitos, e nestes devem ser garantidas a viabilidade de uma vida digna, livre de opressões, violências e dos constrangimentos exercidos pelos homens sobre elas.
As negações e obstáculos a esses direitos são comumente naturalizados pela cultura dominante patriarcal e androcêntrica, que historicamente culpabiliza as mulheres atribuindo a violência e violações ao próprio destino, cuja resposta deve ser a resignação delas diante de tais abusos.
É de fundamental importância compreender que as práticas e concepções machistas não são involuntárias, pelo contrário são fortemente carregadas de sentido que objetivam manter e sustentar a opressão das mulheres e sua invisibilidade ante o Estado de Direitos e a sociedade como um todo.
Desta lógica, decorrem-se múltiplas distorções que transformam assédio em uma mera cantada; violência, como forma de manifestação de amor; assassinatos como extremos de descontrole emocional; e repudio a aceitação das desigualdades e diferentes formas de violência como fenômeno social, que só tem espaço nos discursos feministas.
Queremos dizer com isso, que a naturalização das desigualdades e da violência, perpetuada nas diversas instâncias sociais, é um subterfúgio para legitimar um anti-direito e afastar cada vez mais as mulheres, da realização plena de uma vida digna como direito fundamental de todos os seres humanos.
Neste sentido, o Brasil consolidou em 2006, uma legislação especifica, de tutela especial às mulheres, através da denominada Lei Maria da Penha. Como forma de combate a esta violência especifica, e como reconhecimento, que pela Lei geral, esta forma de violência não seria vencida. Assim, a Lei Maria da Penha, fez assumir, o problema da violência contra mulher, como questão de interesse publico, e não restrito a esfera privada, (“onde não se metia a colher”).
A Lei, que completa agora cinco anos de vigência, bem como as mulheres que dela se utilizaram, foram menosprezadas, questionadas, atacadas, pelos próprios operadores do direito, que saíram prontamente invocando a sua inconstitucionalidade e negando a sua aplicação e necessidade. Fato que conduz a compreensão, de que, um dos principais desafios a serem enfrentados para sua eficácia é sim, a urgente e necessária superação da cultura machista entranhada na própria estrutura de aplicação do direito no país. Deste modo, uma transformação na prestação da tutela jurisdicional, que deve estar a serviço de garantir os direitos da mulher e não da legitimação das desigualdades entre eles e elas naturalizada no conjunto da nossa sociedade.
Além do ex-juíz Mezzomo, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, juiz titular da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), considerou a Lei Maria da Penha inconstitucional e suas decisões foram integralmente reformadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste caso, o juiz declarou que a Lei Maria da Penha tem "regras diabólicas" e que as "desgraças humanas começaram por causa da mulher", além de outras frases igualmente polêmicas. Na ocasião da abertura do processo, declarou à imprensa que combate o feminismo exagerado, como está previsto em parte da lei. Para ele, esta legislação tentou "compensar um passivo feminino histórico, com algumas disposições de caráter vingativo".

A gota d’água

O desligamento do Sr. Marcelo Colombelli, é fruto da reincidência em uma série de “procedimentos incompatíveis” que ele vinha procedendo desde quando foi nomeado juiz. Sabe-se que ele já estava respondendo a outros procedimentos por conduta inadequada e havia sido penalizado com uma censura, que é uma advertência relativamente grave.
É também, uma demonstração, de que a sensibilização necessária da estrutura judicial para o fenômeno da violência sexista, já surte efeitos, embora, haja um longo caminho a ser trilhado para que a justiça, realmente se perfectibilize para as mulheres.
Diante de tudo, não estranhamos que para este ex-juíz a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é considerada inconstitucional e que furtava-se a aplicar a Lei, pois não aceitava julgar processos tendo ela como norma única. Além de não cumprir com sua obrigação enquanto magistrado ele escrevia e publicava artigos sobre suas posições. Chegou a defender que a Lei trata as mulheres com o olhar da vitimização e publicou num sitio de Direito que “Partir do pressuposto de que as mulheres são pessoas fragilizadas e vitimizadas, antes de protegê-las, implica fomentar uma visão machista. Não há em todo o texto constitucional uma só linha que autorize tratamento diferenciado a homens e mulheres na condição de partes processuais ou vítimas de crime”.
Quando juiz titular da 2ª Vara Criminal de Erechim, nunca aplicou a Lei Maria da Penha por considerá-la inconstitucional e violadora da igualdade entre homens e mulheres. Escrevia em suas sentenças que o "equívoco dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos, seja onde for", e que "perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país".
Ora, só uma justiça míope, pode pretender tratar desiguais como iguais, promovendo assim maiores injustiças. Fazendo valer suas convicções pessoais, e afastando uma norma legitimamente vigente, fez o ex-juiz as mulheres duplamente vitimas: quando vitimas da violência e ao isentar de responsabilização criminal os agressores.
Assim, identificamos que em diversas situações, o Ministério Público tem recorrido contra as sentenças de juízes em relação às medidas protetivas, haja vista que não são poucos os magistrados que se negam a reconhecer na Lei Maria da Penha sua legalidade e potencial de realização de justiça. Todos os recursos foram concedidos pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Assim, passo a passo, o próprio direito vai afastando as pedras do caminho da justiça. O Sr. Marcelo Colombelli Mezzomo, ex-juiz, é uma pedra a menos, nesta longa jornada que temos para consolidar a justiça para as mulheres, efetivando-se para além da lei e sua forma abstrata.
É imprescindível considerar que a (descom)postura do Sr. Marcelo enquanto no exercício da magistratura, expôs o seu machismo pessoal e todo o seu preconceito contra as mulheres, valendo-se de forma irresponsável da distorção dos instrumentos e dispositivos legais. Já em julho de 2008 a Marcha Mundial das Mulheres repudiou os comentários do ex-juiz afirmando que este, reproduzia o machismo e o patriarcado existente nas estruturas de direito da sociedade. Passados 2 anos e 7 meses o próprio Sr. Marcelo corrobora nossa afirmativa assumindo-se como infrator potencialmente enquadrado pela Lei Maria da Penha. Dessa forma fica nítida e materializada a sua irresponsabilidade e improbidade cometidas no ato de emitir interpretação falsa e pessoalizada de tal legislação em detrimento da aplicação justa e igualitária do Direito.
Permanecem algumas questões. Quantas mulheres serão vítimas duplamente da violência sexista praticada em casa e nos tribunais? Quantos Colombellis utilizarão da deturpação da Justiça para sustentar a invisibilidade e os crimes cometidos contra as mulheres? Quantas Danielas levantarão a voz exigindo seus direitos? Quantas notas, textos, artigos os movimentos feministas terão de escrever reafirmando e combatendo as mesmas práticas, machismo, misoginia e sexismo? Até quando?

Ações do Movimento de Mulheres

A Marcha Mundial das Mulheres, em sua Ação 2010, definiu 4 eixos de intervenção sendo um deles é a violência contra as mulheres. E fala justamente desta violência naturalizada, que faz parte do cotidiano da maioria das mulheres brasileiras e em todos os países e precisa ter um fim. Mas de que forma as mulheres estão se organizando para isto? Dando visibilidade a todas as formas de violência e sua origem. Sabemos que a raiz está no machismo que trata todas as mulheres como objeto e se manifesta de diferentes formas na sociedade capitalista, discriminadora e misógina.
Sabemos que é senso comum que a violência tem sua maior expressão dentro de casa e os agressores estão entre as pessoas conhecidas da mulher, e mais que isso, compõem suas relações de afeto. Mas também sabemos que é violência sermos tratadas como mercadoria, como objetos de desejo dos homens.
Uma vitória foi obtida com a exoneração deste juiz e esperamos que outros juízes também tenham suas condutas avaliadas. A sociedade precisa assumir um compromisso com a tolerância, a paz, e com a igualdade substancial. Para isto cabe ao movimento de mulheres, dar cada vez mais visibilidade às lutas das mulheres contra a violência sexista, a partir da sensibilização das pessoas, através da pressão para que o Estado elabore e execute políticas públicas e o judiciário seja de fato uma instituição ética na qual depositamos nossa confiança e respeito.
Precisamos lutar contra a padronização e por mudanças culturais urgentes. As novas relações sociais serão construídas a partir destes paradigmas, rumo a um projeto global de transformação da vida das mulheres e da sociedade.
Mudar o mundo para mudar a vida das mulheres para mudar o mundo!

* Analine Specht, Claudia Prates e Sirlanda Selau são militantes fiministas da Marcha Mundial das Mulheres do RS

 

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Homenagem aos 140 anos de nascimento da “Rosa Vermelha”


Rosa Luxemburgo nasceu em 5 de março de 1871 em uma pequena vila polonesa, no seio de uma família judia de classe média. A Polônia vivia sob o domínio do império russo e os pais de Rosa defendiam idéias anticzaristas. Ela foi educada com os seus cinco irmãos na capital, Varsóvia, e ainda criança, devido a um erro médico, ficou com uma perna mais curta, o que a deixou manca pelo resto da vida. Rosa começa sua militância no movimento socialista ainda quando estava na escola secundária. 

Em 1889, ano da fundação da Segunda Internacional, Rosa teve que fugir da Polônia a fim de não ser deportada para a Sibéria. Foi para a Suíça estudar economia na universidade de Zurique, onde entra em contato com eminentes marxistas russos exilados, como Vera Zassulitch e Plekhanov. Em 1890, chega à Suíça o futuro companheiro de Rosa, Leo Jogiches, e juntos passam a integrar no exílio a direção do Partido Social Democrata da Polônia.

Após completar o seu doutorado sobre a industrialização da Polônia, Rosa parte para a Alemanha, burlando a legislação do país contra estrangeiros através de um casamento “arranjado” com o filho dos seus amigos e hospedeiros em Zurique. Desta forma, em 1898, ela chega a Berlim, ingressando no maior partido socialista da época, o PSD de Karl Kautsky (o principal teórico do partido e da Internacional), August Bebel (dirigente histórico do socialismo alemão), Clara Zetkin (feminista fundadora da Internacional) e Franz Mehring (o grande biógrafo de Marx).

 Rosa passa a escrever na revista teórica do partido alemão, a Neue Zeit (Novos tempos), dirigida por Kautsky. São nas páginas desta revista que o principal teórico da ala direita do PSD, Eduard Berstein, entre 1898 e 1899, publica suas teses revisionistas do marxismo. Berstein tentava demonstrar que o programa e a tática do movimento socialista precisavam se adequar a nova realidade que, segundo ele desmentia as concepções de Marx e Engels. Rosa ataca as teses revisionistas em sua obra Reforma social ou revolução? , denunciando o esquematismo teórico e o oportunismo político de Berstein, que abandonava não apenas o marxismo como a luta pelo socialismo. Para Rosa, “entre a reforma e a revolução devia haver um elo indissolúvel” no qual “a luta pela reforma é o meio e a revolução social é o fim”.

É também nas páginas da Neue Zeit, que entre 1901 e 1902 Rosa abre uma polêmica com Kautsky sobre a greve de massas como instrumento revolucionário da classe trabalhadora. Nesse debate Rosa teve a perspicácia de perceber, antes de todos (Lenin inclusive, que considerava o dirigente alemão sua grande referência teórica), que a “ortodoxia” marxista do principal teórico e dirigente da Segunda Internacional encobria uma prática política reformista, que pouco se diferenciava da ala direita do partido e da burocracia sindical.

Em 1904, Rosa publica Questões de organização da social democracia russa, polemizando com as posições de Lenin sobre o partido revolucionário (revelando muitos pontos em comum com as críticas do jovem Trotsky). A revolução russa de 1905 inicia em janeiro e essa experiência histórica da primeira revolução do século XX marca profundamente Rosa Luxemburgo, influenciando decisivamente seu pensamento, levando-a a escrever Greve de massas, partido e sindicatos. Nessa obra, ela enfatiza a capacidade revolucionária da classe operária e defende a greve de massas como a forma paradigmática da revolução. Para Rosa a consciência de classe nasce da própria luta e da ação das massas; ela aprende com Marx que pela práxis revolucionária homens e mulheres transformam ao mesmo tempo o mundo e a si mesmos.
 
A partir de 1907, Rosa passa a trabalhar na Escola do PSD alemão; entre 1908 e 1909 escreve A questão nacional, em que se opõe às teses de Lenin sobre o significado revolucionário das lutas das minorias nacionais oprimidas pela autodeterminação. Para ela, a autodeterminação é irrealizável nas condições do capitalismo imperialista, e no socialismo perderia importância, já que as fronteiras nacionais seriam abolidas. Nesse debate entre dois gigantes do marxismo, o realismo político e o gênio estratégico de Lenin superam dialeticamente– como demonstram a história dos processos de descolonização do século XX – as posições “utópico-ortodoxas” de Rosa Luxemburgo sobre a relação da questão nacional e a luta pelo socialismo.
 
Em 1912, já rompida politicamente com Kautsky, Rosa conclui sua obra teórica A acumulação do Capital, com o imperialismo como tema central. Em 1914 a Primeira Guerra Mundial marca a derrocada da Segunda Internacional, com a social democracia européia, majoritariamente, apoiando os respectivos imperialismos nacionais e capitulando ao social-patriotismo. A esquerda do partido alemão reage contra a traição social democrata fundando a Liga Espartaco  (homenagem ao líder da revolta dos escravos romanos), tendo Rosa Luxemburgo, sua grande amiga Clara Zetkin e Karl Liebknecht (único deputado a votar contra os créditos de guerra no parlamento alemão) à frente do movimento revolucionário internacionalista que será o embrião do partido comunista na Alemanha.
 
Frente ao horror da guerra que provoca mais de 10 milhões de mortes e destruição sem igual na Europa, Rosa proclama um apelo à humanidade: socialismo ou barbárie. Devido a sua militância incansável contra a guerra imperialista, Rosa vai para a prisão onde escreve um texto clássico da literatura marxista revolucionária, A crise da social-democracia, assinando o folheto sob o pseudônimo “Junius”. A divisão no interior da social democracia alemã se aprofunda em meio ao desenrolar da guerra, a juventude socialista do PSD adere em massa aos espartaquistas. Ainda na prisão, em 1918, Rosa escreve A revolução russa, obra crítica, mas absolutamente solidária com o partido bolchevique, a quem ela reconhecia como a verdadeira vanguarda da revolução mundial, apesar de criticar sua pretensão em transformar a estratégia vitoriosa na Rússia em modelo para toda a esquerda internacional.
 
Em A revolução russa, Rosa alerta sobre o perigo mortal para a revolução socialista da ausência de democracia em todas as esferas políticas:
Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem uma luta livre entre as opiniões, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente, onde só a burocracia resta como o único elemento ativo.
 
Nessa obra, ela também define o caráter e o sentido da democracia socialista nos seguintes termos:
A tarefa histórica que cabe ao proletariado, uma vez no poder, é de criar a democracia socialista, em lugar da democracia burguesa, e não de suprimir toda democracia. Mas a democracia socialista não começa somente na terra prometida, quando tiver sido criada a infra-estrutura da economia socialista, como um presente de Natal para o bom povo, que, nesse intervalo, sustentou fielmente o punhado de ditadores socialistas.
 
Libertada no final de 1918, graças ao início da revolução na Alemanha e a derrubada da monarquia constitucional, Rosa publica o jornal Bandeira Vermelha. A revolução inicia com a irrupção dos conselhos operários e a Liga Espartaco funda o Partido Comunista, e Rosa escreve o seu programa.
A essência da sociedade socialista consiste no seguinte: a grande massa trabalhadora deixa de ser uma massa governada, para viver ela mesma a vida política e econômica na sua totalidade e para orientá-la por uma autodeterminação consciente e livre.
 
Inicia 1919 e o proletariado de Berlim declara a greve geral, o recém formado Partido Comunista lança o chamado à insurreição. Rosa se opõe porque entende que as condições ainda não permitem a tomada do poder, mas fica em minoria e acaba acatando a linha aventureirista da maioria. A contra-revolução entra em ação e consegue esmagar a primeira tentativa insurrecional dos trabalhadores alemães, com a inestimável ajuda de lideranças socialdemocratas como Noske, Scheidermann e Ebert (esse último confessa: odeio a revolução como a um pecado mortal. Em 15 de janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht são seqüestrados e assassinados por tropas da extrema direita. Em março, na abertura do congresso de fundação da Terceira Internacional em Moscou, Lenin presta homenagem a “Rosa Vermelha”, a “águia polonesa”.

Eduardo Mancuso

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida



Desencontros, mitos e fantasias.

Quantas vezes não ouvimos contar que o Dia Internacional da Mulher foi criado em homenagem a operárias têxteis mortas em um incêndio em 1857, em Nova York. Ou talvez em 1908 ou 1910. Ou mesmo que a comemoração, decidida em 1910 na conferência de mulheres socialistas, escolheu o dia 8 de março para lembrar as operárias mortas em um incêndio. Como vimos acima, a criação do Dia Internacional das Mulheres não tem qualquer vinculação com eventos de greves ou de incêndio ocorrido nos Estados Unidos. 

Algumas feministas européias na década de 1970 já levantavam dúvidas sobre essas versões e foram sugerindo pesquisas que pudessem desvendar as histórias repetidas sem qualquer evidência.
 
Em 1911, ocorreu em Nova York um incêndio em uma fábrica têxtil onde morreram mais de uma centena de trabalhadores, em sua imensa maioria mulheres. Um evento trágico e importante para a história do movimento dos trabalhadores nos Estados Unidos. Nesta data, entretanto, as militantes socialistas já haviam aprovado a criação do Dia Internacional das Mulheres. E o incêndio tampouco ocorreu na data do dia 8 do mês de março. Ao misturar, contar e recontar histórias também se escondeu uma história política, das militantes socialistas. Recuperar os elos perdidos dos fatos e da história enriquece a luta das mulheres. O ciclo de lutas, numa era de grandes transformações sociais, até as primeiras décadas do século XX, tornaram o Dia Internacional das Mulheres o símbolo da participação ativa das mulheres para transformarem a sua vida e transformarem a sociedade.

Leia o texto na íntegra em http://www.sof.org.br/publica/Dia_Internacional_da_Mulher-SOF-Em_busca_da_memoria_perdida-ATUALIZACAO2010.pdf

Antonio Gramsci (120 anos), atualidade da filosofia da práxis



Antonio Gramsci nasce em 22 de janeiro de 1891, na Sardenha, filho de um funcionário de cartório. Ainda pequeno sofre uma doença óssea que o acompanha por toda a vida. Já adolescente começa a ler a imprensa socialista, graças ao seu irmão mais velho, Genaro, militante do Partido Socialista Italiano (PSI).
 
Em 1911, Gramsci ganha uma bolsa de estudos e vai para Turim, industrializada cidade do norte da Itália, entra na Faculdade de Letras e ingressa no PSI. Em 1915, abandona a universidade e passa a integrar a redação do Avanti, jornal do partido. Em 1917, sob a influência dos acontecimentos revolucionários na Rússia, explodem greves operárias contra a guerra e Gramsci escreve artigos defendendo o caráter socialista da revolução russa, entre eles o famoso A revolução contra o ”Capital”. Torna-se secretário da comissão executiva do partido em Turim e participa da “fração intransigente revolucionária” do PSI, junto com Amadeo Bordiga.
 
Em 1919, junto com outros companheiros, Gramsci cria a revista L’Ordine Nuovo (A nova ordem), com o subtítulo “Resenha semanal de cultura socialista”. Escreve sobre democracia operária, defendendo os conselhos de fábrica como futuros “órgãos de poder proletário”. Defende a estratégia dos conselhos como crítica radical da incapacidade das organizações tradicionais do proletariado, sua falta de democracia, seu espírito burocrático, e também como a maneira da classe trabalhadora criar sua própria forma democrática de governo.

Gramsci foi preso pela primeira vez durante a greve política de solidariedade do movimento operário italiano às repúblicas comunistas da Rússia e da Hungria. Em 1920, a greve geral em Turim é derrotada pelo patronato e o II Congresso da Internacional Comunista (Comintern) fixa as condições políticas e programáticas para o ingresso de partidos nacionais, os famosos “21 pontos”. Gramsci participa da formação da fração comunista do PSI.
 
Em 1921 é fundado o Partido Comunista, seção italiana do Comintern, com a adesão de grande parte da Juventude Socialista e tendo Gramsci e Bordiga à frente de sua direção. Um ano depois, os dois partem para Moscou, onde trabalham na Internacional e Gramsci conhece sua companheira, Julia Schucht. Trotsky convida-o a escrever uma nota sobre o futurismo italiano para ser publicado em Literatura e revolução. Em 1922, com a Marcha sobre Roma, os fascistas tomam o poder e instauram seu governo ditatorial.
 
Em 1924, após regressar a Itália, Gramsci torna-se secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) e sua mulher tem o primeiro filho do casal em Moscou. Em 1926, o PCI realiza o seu III Congresso na cidade francesa de Lyon, e Gramsci apresenta o informe e as teses políticas, que obtém 90% dos votos dos delegados, restando 10% em apoio as posições esquerdistas de Bordiga. Os fascistas cassam os deputados da oposição e toda a bancada comunista no parlamento. Antes da sua prisão, Gramsci envia carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em nome da executiva do PCI, tratando das divergências entre a maioria em torno de Stalin e Bukharin e a oposição liderada por Trotsky e Zinoviev. Ele chama atenção na carta sobre o perigo de ruptura no partido da revolução de Outubro, e faz um pedido explícito à maioria no sentido de não “esmagar” a minoria. Stalin não lhe dá ouvidos e registra sua atitude para o futuro.
 
Em 1928, começa o processo fascista contra Gramsci e o grupo dirigente do PCI. O promotor declara: “devemos impedir esse cérebro de funcionar durante vinte anos”. No início de 1929, Gramsci começa a escrever aqueles que serão conhecidos como os Cadernos do cárcere, nos quais define o marxismo como filosofia da práxis. Em 1930, solicita sem sucesso livros de Trotsky, depois da expulsão deste da União Soviética e volta a manifestar divergências com a política do partido e da Internacional. Em 1937, após quase uma década na prisão e com a saúde completamente comprometida (sem nenhuma tentativa para libertá-lo por parte da União Soviética), Gramsci é solto pelo regime fascista, e morre de derrame cerebral alguns dias depois. Tatiana Schucht, sua cunhada, entrega a embaixada russa os mais de trinta cadernos de Gramsci (totalizando cerca de 2500 páginas), que são enviados para Moscou. Então a direção da Internacional Comunista confia a Palmiro Togliatti a “herança literária” de Gramsci. Em abril de 1941, Togliatti envia carta ao secretário-geral da Internacional Comunista, Dimítrov, com sua avaliação sobre a “herética” obra gramsciana:
 
Os cadernos de Gramsci, que já estudei cuidadosamente em quase sua totalidade, contém materiais que só podem ser utilizados depois de uma cuidadosa elaboração. Sem esse tratamento , o material não pode ser utilizado, e, aliás, algumas partes do mesmo, se forem utilizados, na forma em que se encontram atualmente, poderiam não ser úteis ao partido. Por isso, penso que esse material deva permanecer em nosso arquivo, para ser aqui elaborado.
 
O marxismo inovador e heterodoxo de Gramsci, que nos Cadernos do cárcere define o socialismo pela expansão do controle democrático das massas, era perigoso demais para o stalinismo, que já havia dominado completamente o partido e a Internacional. Nos Cadernos, Gramsci afirma que após a derrota da revolução nos países capitalistas avançados (que ele chama de formações sociais do “Ocidente”), com sociedades civis complexas e instituições consolidadas, a estratégia revolucionária passa pela “guerra de posição” e a construção da hegemonia, em contraponto a “guerra de movimento” vitoriosa na Rússia (formação social do “Oriente”), através do ataque frontal ao Estado. Nos Cadernos do cárcere Gramsci define o Estado como força mais consentimento, o “Estado ampliado”: sociedade política mais sociedade civil.
 
Para Gramsci (assim como para Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky) a ação política real das classes trabalhadoras enquanto política de massas passa pela unidade da “espontaneidade” com a “direção consciente”. Construir essa síntese é a tarefa central do partido e do movimento revolucionário. Para ele o partido revolucionário só se torna força dirigente real se o proletariado se constitui em classe com projeto nacional, com intelectuais orgânicos preparados para a luta ideológica, e com capacidade hegemônica de construir e impulsionar um novo “bloco histórico” com os demais setores explorados e oprimidos. A estratégia socialista vitoriosa passa por “ganhar a maioria” e pela construção da hegemonia alternativa (“contra-hegemonia”), isto é, conquistar a direção intelectual e moral sobre as amplas massas da sociedade. 

Para Gramsci e o marxismo da filosofia da práxis o movimento político das massas é a condição para a auto-emancipação e o socialismo.
 
Escrito por Eduardo Mancuso, direcionado para o Seminário de Juventude da Juventude da Democracia Socialista.
   

Lenin - 140 anos do maior revolucionário do século XX



Vladimir Ilitch Ulianov (Lenin) nasceu em 22 de abril de 1870, na cidade russa de Simbirsk. Filho de um funcionário público integrante da pequena nobreza do império czarista, ainda jovem viu seu irmão mais velho ser enforcado por participar de uma conspiração contra o czar. Ingressou na Universidade de Kazan para o curso de Direito, mas foi expulso devido a atividades políticas. Seu primeiro panfleto importante foi Quem são os amigos do povo, uma crítica ao populismo russo. Preso e exilado na Sibéria, casou-se com sua companheira de toda a vida, Nadia Krupskaia. Em 1899, concluiu O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, onde analisou a transição do feudalismo ao capitalismo no grande país dos czares.

Em 1900, no exílio, Lenin reuniu-se em Genebra ao grupo do “pai do marxismo russo”, Plekhanov, e juntos organizaram o jornal Iskra (Centelha), órgão do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). Em 1902 Lenin publicou Que fazer?  - onde apresentou o seu projeto de organização de um partido revolucionário – que polarizou o II Congresso do POSDR realizado um ano depois em Londres e marcou a cisão do partido em duas frações: a maioria dirigida por Lenin (bolcheviques) e a minoria (mencheviques). Os bolcheviques tinham uma estratégia revolucionária para a derrubada da autocracia, e para isso era necessário um partido clandestino, militante e centralizado; enquanto os mencheviques defendiam a aliança com a burguesia liberal e a organização partidária tradicional da social-democracia européia. Em 1904 Lenin escreveu Um passo em frente, dois passos atrás, onde fez o balanço da crise do partido, após o congresso.

O ano de 1905 iniciou com uma sucessão de greves evoluindo para a greve geral que paralisou 150 mil trabalhadores em São Petersburgo, a capital do império, e produziu em 9 de janeiro uma gigantesca manifestação pacífica em frente ao Palácio de Inverno para apresentar reivindicações ao “paizinho”, como os camponeses chamavam o czar Nicolau. As tropas abriram fogo sobre a multidão, produzindo um massacre que entrou para a história como o “domingo sangrento”. A partir daí, sucederam-se amplas mobilizações dos trabalhadores, explodiram greves por toda a Rússia e surgiram pela primeira vez os sovietes, os conselhos operários. Em junho ocorre a sublevação do Encouraçado Potenkin (que vinte anos depois Serguei Eisenstein transformou em um clássico do cinema); em outubro eclodiu a greve geral e Trotsky assumiu a presidência do soviete de São Petersburgo (futura Petrogrado). Em dezembro estourou a insurreição dos trabalhadores em Moscou, e as tropas czaristas só conseguiram controlar a situação com muita violência.

Do exílio em Genebra, Lenin apoiou a plataforma de armar o povo e garantir um governo revolucionário que convocasse a assembléia constituinte de toda a Rússia, com base no sufrágio eleitoral direto e secreto. Em novembro de 1905, ele conseguiu voltar à Rússia e transformou o jornal legal Novaia Jizn (Vida Nova) em um órgão com tiragem diária de 80 mil exemplares, sendo a primeira experiência de um jornal bolchevique legal e com influência de massas. Após a experiência revolucionária de 1905, Lenin reconheceu que a classe trabalhadora, sem a mediação de nenhum partido - a influência dos bolcheviques, na clandestinidade e com a direção no exílio foi pequena nos rumos dos acontecimentos -, espontaneamente construíram os órgãos da insurreição: os sovietes.

Com o esmagamento da primeira revolução russa (o “ensaio geral” de Outubro, nas palavras de Lenin) e o refluxo do movimento de massas, organizou-se um congresso de reunificação do POSDR em 1906 e desta vez os mencheviques tiveram a maioria e impuseram as suas posições. Porém, no congresso de 1907, os bolcheviques retomaram a maioria. Nesse período, Lenin participou ativamente do congresso da Segunda Internacional e nos debates da questão colonial, onde a esquerda socialista derrotou as teses social-imperialistas sobre a “missão civilizadora” das potências européias em relação aos povos coloniais.
 
Voltando ao exílio, Lenin se dedicou ao combate teórico contra o revisionismo filosófico no campo do marxismo, escrevendo em 1908, Materialismo e empiriocriticismo, onde expressou uma concepção materialista mecanicista (completamente superada alguns anos depois em seus estudos filosóficos da dialética de Hegel). Lenin mudou-se de Genebra para Paris, de onde escrevia artigos para a imprensa socialista, e combatia os setores de direita da social-democracia russa (chamados “liquidacionistas” por quererem acabar com as estruturas clandestinas do partido), e o ultra-esquerdismo de Bogdanov que defendia a retirada dos deputados bolcheviques da Duma (assembléia parlamentar controlada pelo czarismo) e se negava a desenvolver qualquer trabalho político legal.
 
Nesse período em Paris, Lenin participou do Congresso da Internacional em Copenhague, e organizou escolas de formação para os militantes bolcheviques na periferia da capital francesa. Em 1912, realizou-se o encontro do POSDR, em Praga, que marcou a cisão definitiva do partido, em que a maioria votou a expulsão dos liquidacionistas e aprovou a formação do jornal Pravda (A Verdade). Nas eleições para a Duma nesse ano os bolcheviques receberam mais de um milhão de votos, enquanto os mencheviques tiveram 250 mil. Em 1913, Lenin mudou-se para a cidade polonesa de Cracóvia para poder acompanhar melhor o movimento operário e o trabalho do partido na Rússia - o Pravda tinha uma tiragem de milhares de exemplares. Com a retomada da mobilização dos trabalhadores e das lutas democráticas contra a monarquia, os bolcheviques se afirmaram como partido revolucionário, conseguindo aumentar a sua influência política e implantação social, combinando formas legais e ilegais de organização, agitação e propaganda.
 
A Europa estava às portas da Primeira Guerra Mundial. Em 1914, Lenin chegou à Suíça enquanto os deputados da social-democracia alemã votavam os créditos de guerra para que o governo do Kaiser iniciasse o conflito que massacrou 10 milhões de europeus. Dirigentes social-democratas passaram a integrar os governos de seus países, aderindo ao “social-patriotismo” e ao militarismo. A maioria da Segunda Internacional havia se passado para o lado do imperialismo, traindo o movimento dos trabalhadores e o socialismo. Lenin escreveu A falência da II Internacional, defendendo a transformação da guerra imperialista em guerra civil.
 
Durante os primeiros anos da guerra, Lenin estudou profundamente a dialética de Hegel e elaborou o que ficou conhecido como Cadernos filosóficos, onde superou o materialismo vulgar expresso anteriormente. Essa imersão na dialética hegeliana levou Lenin a afirmar que não se podia compreender plenamente O Capital de Marx sem o entendimento da lógica dialética. Sobre a base desse aprofundamento filosófico e sob o impacto da guerra mundial, escreveu duas de suas obras teóricas mais importantes: Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916) e O Estado e a Revolução (1917). Também nesse período Lenin e vários dirigentes da esquerda internacionalista que se opunham à guerra, como Rosa Luxemburgo e Trotsky, encontraram-se em duas conferências na Suíça: Zimmerwald e Kienthal.
 
Com o horror e a fome provocados pela guerra, em fevereiro de 1917 a revolução iniciou na Rússia com a insubordinação nas fileiras do exército e o ressurgimento dos sovietes e das mobilizações operárias derrubando a fragilizada autocracia do czar. Assumiu o poder o governo provisório de monarquistas constitucionalistas e burgueses liberais, que contou com o apoio crítico dos sovietes dominados pelos mencheviques e pelos socialistas revolucionários (o principal partido do campesinato). Nas suas Cartas de longe, Lenin orientou o partido bolchevique a priorizar a intervenção nos sovietes e a não se comprometer com o governo provisório, que logo passou a contar com a participação dos mencheviques e socialistas revolucionários.
 
Um plano organizado pelo secretário do partido social-democrata suíço conseguiu obter o salvo-conduto do governo alemão para que Lenin e outros exilados russos (a maioria bolcheviques) atravessassem a Alemanha em um trem selado até a costa do Mar Báltico, de onde foram até a Finlândia e dali novamente de trem chegaram a Petrogrado (antiga São Petersburgo) na noite de 3 de abril. Uma grande multidão esperava Lenin, os marinheiros da fortaleza de Krondstadt garantiram a segurança e uma banda militar tocou a Marselhesa, e ao desembarcar do trem, ele saudou a todos com um chamado à revolução socialista.
 
Após chegar a Petrogrado, Lenin tomou a direção do jornal Pravda, lançou as Teses de abril e mergulhou na luta interna do partido bolchevique para conquistar a maioria. Apesar da forte resistência das instâncias de direção às suas teses, ditas “trotskistas”, Lenin conquistou a maioria do partido de alto a baixo e retomou o controle político no comitê central. “Todo o poder aos sovietes” foi a palavra de ordem que resumiu a virada estratégica leninista do partido bolchevique e garantiu posteriormente a vitória de Outubro. As Teses de abril defendiam a república dos sovietes como a forma política da ditadura do proletariado, a mudança do nome da organização bolchevique para Partido Comunista e a fundação da Terceira Internacional.
 
Em junho, no I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, no qual os bolcheviques tinham apenas 10% dos delegados eleitos, a afirmação de Lenin de que o seu partido estava pronto para assumir o poder foi recebida com gargalhadas pela maioria reformista. Em julho, Trotsky e a organização Interdistrital de Petrogrado ingressaram no partido bolchevique. Em agosto, o general monarquista Kornilov deslocou unidades cossacas para Petrogrado, tentando um golpe militar. Diante da impotência do governo provisório e sob a direção dos bolcheviques, recém libertados das prisões, operários armados e marinheiros derrotaram a contra-revolução monarquista. Em 16 de outubro, Lenin apresentou ao comitê central bolchevique resolução defendendo a insurreição imediata, adotada por 19 votos contra os votos de Zinoviev e Kamenev (e quatro abstenções!). Nesse mesmo dia, a reunião plenária do Comitê Militar Revolucionário, presidido por Trotsky, iniciou a preparação para a tomada do poder. A data foi marcada para coincidir com a abertura do II Congresso dos Sovietes. Lenin saiu da clandestinidade e se dirigiu ao Instituto Smolni, sede do soviete de Petrogrado.
 
Na manhã de 7 de novembro (25 de outubro pelo antigo calendário russo), após a tomada dos principais prédios públicos sem maiores confrontos (em Moscou os enfrentamentos foram mais duros) , o poder estava nas mãos do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado. Pela noite, sob os disparos do cruzador Aurora, começou o assalto ao Palácio de Inverno, tomado algumas horas depois. O Estado soviético nasceu com os primeiros decretos apresentados por Lenin ao Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, sobre a questão da paz e sobre a questão da terra. Nessa mesma sessão o Congresso dos Sovietes aprovou a formação do Conselho dos Comissários do Povo e elegeu Lenin como presidente. Nos primeiros meses do poder soviético, foram nacionalizados os bancos, as estradas de ferro e as grandes empresas, enquanto no campo a revolução agrária que os camponeses haviam começado antes mesmo da tomada do poder pelos bolcheviques prosseguiu expropriando os latifundiários.
 
Em março de 1918, após uma longa e difícil discussão interna no partido e sob a pressão do exército alemão, o poder soviético foi obrigado a assinar o acordo de paz de Brest-Litovski, e a capital foi transferida para Moscou. Em agosto, quando mais da metade do território russo estava sob o controle dos contra-revolucionários exércitos brancos, Lenin sofreu um atentado executado por uma militante dos socialistas revolucionários. Esteve a ponto de morrer, mas se recuperou e em novembro já escrevia A revolução proletária e o renegado Kautsky, onde atacava o principal teórico da social-democracia.
 
Em março de 1919, realizou-se em Moscou o congresso de fundação da Internacional Comunista (o Comintern), e na Hungria era proclamada a república dos conselhos (que teve uma vida breve). Nos combates da guerra civil, os exércitos brancos sofreram derrotas importantes diante do Exército Vermelho comandado por Trotsky, que conseguiu libertar várias regiões do país, como os Urais, a Sibéria, a Ucrânia, e partes do Cáucaso. Sob pressão interna dos trabalhadores e do movimento sindical, Inglaterra e França foram obrigadas a levantar o bloqueio à Rússia soviética.
 
Em 1920, a ruína do país era total. Foi preciso implantar o “comunismo de guerra” para conseguir alimentar o Exército Vermelho que enfrentava e derrotava as tropas brancas na Criméia e fazia retroceder o exército polonês até o interior de suas fronteiras. Preparando o segundo congresso da Internacional, Lenin publicou Esquerdismo, doença infantil do comunismo, no qual criticou o sectarismo esquerdista, caracterizando-o como erros de crescimento de partidos comunistas jovens e com pouca experiência, e que ainda não dominavam as formas e métodos de trabalho entre as massas. Em julho, no II Congresso da Internacional Comunista, Lenin homenageou os revolucionários alemães Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, assassinados covardemente um ano antes, e foram ratificadas as famosas 21 condições de admissão na Internacional.

Ao final da guerra civil, depois da derrota da contra-revolução dos exércitos brancos e estrangeiros, a situação da Rússia era horrível. A indústria estava quase destruída e a produção agrícola arrasada, assim como o sistema de transporte. A fome era grande, faltavam pão, alimentos e artigos de primeira necessidade. 
 
A dinâmica política dos sovietes não era a mesma de antes da guerra civil, a classe operária tinha diminuído significativamente devido a três anos de combates sangrentos, além de ser absorvida pelas tarefas de gerir o novo Estado dos trabalhadores. Moscou e Petrogrado tiveram suas populações reduzidas pela metade. No início de 1921, sob o impacto da revolta dos marinheiros da fortaleza de Kronstadt esmagada pelos bolcheviques, Lenin lançou a NEP, a nova política econômica pondo fim ao período do comunismo de guerra. O X Congresso bolchevique adotou a resolução sobre a unidade do partido, prescrevendo em caráter extraordinário a dissolução dos grupos e facções internas, provavelmente o maior erro político da direção leninista, com conseqüências trágicas sobre o destino da revolução russa e do movimento comunista internacional.

No final de 1921, a saúde de Lenin piorou e ele foi obrigado a se afastar das tarefas de governo e do partido. Em março de 1922, Lenin abriu o XI Congresso do partido apresentando um balanço positivo do primeiro ano da NEP, depois participou da abertura do IV Congresso da Internacional, porém em dezembro sofreu um ataque. Sentindo que logo poderia ficar completamente incapacitado e preocupado com os rumos do partido e os sinais de burocratismo, ele ditou a famosa “Carta ao Congresso”, na qual propôs transferir Stalin da secretaria geral. Em 1923, Lenin propôs a Trotsky a formação de um bloco contra a fração stalinista, mas logo sofreu novo ataque, e não pode participar do XII Congresso do partido.

 Em 21 de janeiro de 1924, aos 53 anos, Vladimir Ilitch Ulianov morreu. O corpo de Lenin foi levado para a Casa dos Sindicatos e durante quatro dias mais de 900 mil pessoas prestaram a última homenagem ao fundador da república soviética. O Congresso dos Sovietes aprovou o pedido do soviete de Petrogrado de mudar o nome da cidade para Leningrado. Ao contrário do desejo expresso de Lenin, seu corpo embalsamado foi transferido para a Praça Vermelha. Mumificado e idolatrado como um semideus, derrotado por Stalin em sua derradeira vontade política, Lenin não conseguiu vencer o seu último combate: impedir a burocratização da primeira revolução socialista mundial. Mas influenciou decisivamente como nenhum outro revolucionário os acontecimentos do século XX.

Texto escrito por Eduardo Mancuso, direcionado para o Seminário de Juventude da Democracia Socialista.